TMIE, standing on the threshold of the outside world (Texto da folha de sala)




No limiar do mundo exterior

Não, não se trata de uma gralha. TMIE é o acrónimo de Transmembrane Inner Ear (transporte trans-membranário do ouvido interno). É um gene, um dos elementos inicialmente activos na formação do ouvido interno, que está presente na cóclea e faz parte do complexo processo de transdução electromecânica do som para o nervo auditivo.
O mau funcionamento deste gene é causa de surdez. O seu funcionamento, em condições normais, medeia a passagem entre o mundo sonoro exterior — o das variações da pressão sonora do ar que nos chega ao ouvido interno e o nervo auditivo — até a informação, finalmente, chegar ao cérebro e ser por ele processada.
TMIE é título escolhido para esta obra como um símbolo da ligação do nosso mundo exterior ao mundo interior.
Em TMIE duas deusas, de mitologias diferentes, têm uma conversa improvável sobre os seus universos pessoais. Meretseger, aquela que ama o silêncio, desvenda-nos o que ouve por detrás desse silêncio. Selene, aquela que percorre os céus no seu carro de prata puxado por cavalos, adivinha os ritmos dos astros que vai descobrindo nestas suas deambulações. Um Corifeu ouve o que as duas deusas dizem, procura interpretar a essência das suas palavras e faz-nos a sua síntese.
Os três representam personagens reais.
Meretseger é Beverly Biderman, a canadiana que aos 46 anos, depois de uma surdez profunda desde os 12, decidiu submeter-se a uma operação de colocação de implantes cocleares. Recuperou a audição e teve de reaprender a ouvir. Selene é Henrietta Leavitt, a astrónoma americana. Descobriu a forma de fazer esta coisa quase inimaginável: medir o universo. Henrietta era surda, mas, através da fotometria, parecia ouvir o que os astros lhe diziam. Os seus ritmos, as suas palavras. O Corifeu é Empédocles, o filósofo pré-socrático que procurava as categorias essenciais do Universo e que foi o autor da primeira teoria sobre a natureza do ouvido e da audição. O ouvido: um sino, um ramo carnudo.
Relacionamo-nos com o ambiente que nos rodeia. Perante os sinais e efeitos que dele emanam e a nossa capacidade de os interpretar, o que resta? Consciência? Livre arbítrio? Alma?
Francis Crick sugere que uma parte do cérebro se ocupa a planear acções futuras. Temos consciência das decisões que tomamos em resultado desse planeamento, não do planeamento em si.
Henrietta Leavitt ouvia ou não realmente as estrelas? "Ouvimos com o cérebro" diz Biderman. O implante coclear produziu um "truque da mente" que lhe permitiu voltar a ouvir. "Não ouço como vós" acrescenta Biderman. Quem sabe o que ouve, de facto, Beverly Biderman? Como poderá saber ela o que cada um de nós ouve?
(O libreto desta opera está disponível aqui.)

Agradecimentos:
Um agradecimento, em primeiro lugar, a Beverly Biderman e a George Johnson pela forma generosa como acolheram este projecto. O libreto de TMIE baseou-se sobretudo em dois livros destes dois autores. De Biderman, Wired for Sound: a journey into hearing (1998), recentemente revisto e disponível em formato ebook. De Johnson, Miss Leavitt's Stars: the untold story of the woman that discovered how to measure the Universe (2005). As fontes utilizadas para o libreto completam-se com versões dos Fragmentos de Empédocles, coligidos a partir de traduções diversas, e num fragmento do soneto Evolução de Antero de Quental.
A música de TMIE foi desenvolvida e produzida a partir da ideia da sonificação de curvas de roleta e espirais. Este trabalho foi totalmente realizado com o Kyma, o gerador e processador digital da Symbolic Sound, a quem também ficam aqui expressos os meus agradecimentos.
Ficam também agradecimentos institucionais. À Miso Music Portugal e à Widex em primeiro lugar, por terem contribuído de forma definitiva para tornar TMIE uma realidade. Agradecimentos especiais também à Avantools e ao Teatro da Rainha, pelo apoio imprescindível que deram a este projecto.
Por detrás das instituições estão os indivíduos. Agradecimentos sentidos a Miguel Azguime, Tiago Nunes, Paulo Jorge Ferreira, Fernando Mora Ramos, Ana Pereira, Filipe Gill Pedro, João Pedro Leão, Jorge Simões da Hora, Miguel Lourtie, Maria do Céu Brito e Margarida Vargas.
E como os últimos são os primeiros, fica por fim um destaque especial e um agradecimento infinito a Marina Pacheco. O entusiasmo e o superior talento que colocou ao serviço deste desafio e a energia que lhe dedicou seriam suficientes para me deixar em eterno défice de gratidão. Acresce que, como se tudo isto fosse pouco, é ela que dá a vida que faltava a esta obra. É o seu rosto, mas também a sua alma.

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