Andamos todos ao mesmo

TUNA/TNSJ

Prefiro pensar assim. Prefiro acreditar que os meus sentimentos, as dúvidas que me apoquentam, os dilemas que me dilaceram, as iniquidades que me enraivecem, são afinal partilhados por todos. Imaginem que cheguei a esta conclusão depois de assistir a um debate sobre uma peça de teatro. Só depois do debate fui assistir à peça. Tudo visto e ouvido, ocorreu-me então a possibilidade: andamos, decididamente, todos ao mesmo.
A peça foi “O Fim das Possibilidades”, a coprodução do Teatro da Rainha e do Teatro Nacional de S. João baseada no texto de Jean-Pierre Sarrazac. Em torno da sua apresentação em Lisboa, no TNDMII, foi organizado um pequeno debate em que participou um interessante, heterodoxo e bastante inesperado painel.
Na peça está tudo o que sujbjaz a este nosso quotidiano: a vida, a morte, o passado, o presente, o futuro, o acto vital de viver no presente, o desafio arriscado de recordar o passado, o futuro inevitável que nos assombra o presente, a solidariedade, a generosidade, a falta delas, a justiça e a sua alma gémea, os chico-espertos, os ingénuos, nós enquanto seres transcendentes, enquanto seres mesquinhos, enquanto seres perecíveis, o tapume com que a realidade asfixia a fantasia, as estratégias da fuga, o destino dos fantasistas, o poder dos tapumistas, o viver antes, o viver depois, os perigos de viver durante. Está tudo isto e muito mais.
O Fim das Possibilidades é uma reflexão sobre a perene questão da Teodiceia, feita à luz da realidade actual. Mas é também, em última análise, uma reflexão sobre o tema do poder que, hoje como ontem, formata de modo diferente o problema que o Livro de Jó suscita. É estúpido crer que, à parte alguma catástrofe natural ou maleita incurável, o sofrimento dos despojados e a prosperidade dos poderosos têm origem divina.
Com o tempo fomos deixando de ouvir falar e de discutir problemas tão básicos como o da detenção e  controlo do capital, o da mais valia e da exploração do trabalho. Foram abolidos do discurso oficial e, pudicamente, poucos ousam hoje referi-los.
A peça não se refere explicitamente a este tema nem no debate que a antecedeu os participantes tocaram nestas questões.
Mas é justo lembrar que é do modo de produção em que vivemos, alastrando obscena e impiedosamente pelo mundo fora, que dita muito do que hoje se passa à nossa volta e motiva a nossa revolta. É o modo de produção que condiciona e determina muitas das nossas formas de pensamento e crenças, e é ele que está na raiz de muito do nosso mal estar presente. É neste quadro, e não noutro, que morremos, vivemos, antecipamos o futuro, esquecemos o presente, seleccionamos o passado. É neste quadro, e não noutro, que se definem transcendências, se mede a mesquinhez, surge a chico-espertice. É neste quadro e não noutro, que o nosso quotidiano é condicionado. É neste quadro, e não noutro, que os grandes construtores erguem tapumes à volta das suas obras, escondendo-as do nosso olhar, e é neste quadro, e não noutro, que escavam arrogantemente a terra e preparam os seus palácios para que os possam, finalmente, depois de erguidos, desvendar. É neste quadro e não noutro, que os pais se voltam contra os filhos e os irmãos contra os irmãos. É neste quadro e não noutro que a fantasia é separada da realidade, como se dela não fizesse parte. É neste quadro, e não noutro, que se desenham e constroem as estratégias de fuga. É neste quadro, e não noutro, que são lançados os obstáculos que tornam perigoso viver no presente.
É este quadro, e não outro, que é preciso mudar. Tudo está condicionado pelo modo de produção. O episódio de Jó não é independente de uma estrutura de classe.
A imprensa relatava há dias que um homem do Oregon (E.U.A.) foi preso e multado por recolher, na sua propriedade e para seu uso, água da chuva. A prática da recolha da água da chuva, bem como a preservação de alimentos ou a aprendizagem de técnicas básicas de sobrevivência, fazem parte do mais elementar património cultural humano. Taxá-las, criminalizá-las desvenda o que pode por aí ainda vir. Entretanto, Paul Tudor Jones II, o multimilionário americano, com a fortuna feita como gestor de “hedge funds”, chocou a elite capitalista ao dizer que este sistema baseado numa busca desenfreada do lucro está a ameaçar os próprios fundamentos da sociedade. O capitalismo tem de ser reformulado, sentencia.
A “neuroeconomia” e o “neuromarketing” vêm em seu auxílio. Os especialistas nestas áreas concluíram que os nossos padrões de consumo não são ditados por uma tendência qualquer para materialismo, mas sim por razões de estatuto e diferenciação social. Pode, pois, Paul Tudor Jones II estar descansado. A “ciência” parece ter encontrado uma forma de obviar a ameaça que pende sobre a sociedade moderna. Afinal ninguém quer perder o seu estatuto.
Como referiu no aludido debate o Fernando Mora Ramos, enquanto o número de espectadores de teatro e o apoio que lhe é dado têm vindo a diminuir drasticamente, o número de jovens actores saídos das várias escolas de teatro do país tem vindo a aumentar. As suas condições de trabalho são de uma precariedade chocante, mas eles insistem em fazer a sua formação numa área cuja taxa empregabilidade é praticamente nula e está excluída dos programas do desemprego jovem.
Andamos todos ao mesmo, precisamos é de afinar estratégias.
Quem sabe se é no Teatro que se esconde a derradeira estratégia de resistência para os despojados  sem voz. Talvez o teatro seja a alternativa real à “sobremorte” mais vil a que neste momento todos os Jós estão sujeitos.
Até a ira de Deus está na iminência de ficar ao preço da chuva.

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