Televisões portuguesas: o horror à música

Os portugueses serão menos musicais que os outros povos? Gostarão menos de música? Praticarão menos música per capita? Será a sua estrutura neurológica diferente da dos outros povos, no que respeita às zonas dos seus cérebros que reagem ao fenómeno musical? A música fará menos parte do seu dia a dia? Estarão menos interessados do que os outros pela música que se faz fora do seu país? Estarão, perguntaria mesmo, menos interessados na sua própria música e na dos seus músicos do que os outros povos demonstram estar pela sua própria? Estas e outra perguntas acodem-me à mente quando, de repente, tomo consciência que não vejo um programa de música nas televisões portuguesas há muito, muito tempo.
Não me refiro a essa imbecilidade dos programas dos tops. Nem me refiro aos músicos que vão tocando nos pouquíssimos programas que têm uma banda residente. Refiro-me aos concertos, aos programas gravados em estúdio, às séries de música, aos especiais de música, em especial os que envolvem música e músicos portugueses. Nem um, em nenhuma das televisões existentes, com especial relevo para a RTP, a tal que é paga, a peso de ouro, por todos os portugueses, a tal cujo orçamento parece não chegar nunca, cujas receitas parecem nunca ser suficientes, e que se vai desdobrando em ámens aos governos e programas para atrasados mentais. Há uns anos ainda se viam umas séries cuidadosamente seleccionadas sobre música, rock, jazz. clássica (sempre do estrangeiro que cá não há músicos...), programas geralmente de grande qualidade.
Já não peço um concerto do Francisco Lopez ou do Pedro Carneiro, nem sequer um daqueles videos do Tiago Pereira. Por mim bastaria um enlatadozinho, desses vindos dos States ou da BBC, com música mainstream, que fosse, mas música! Adorava aqueles casamentos musicais improváveis do Jools Holland. Que é feito do Jools? Ou o “Night Music with David Sanborn”. Escutava com prazer os programas do Rui Neves, ou as outras músicas do Zé Duarte... Onde param? Adoraria saber o que escondem os arquivos musicias da RTP, que, suspeito, contêm tanta coisa fantástica... Que é feito de tudo isso?! E já nem queria programas de música de iniciativa e produção próprias, com música e músicos portugueses. Bastavam os enlatados...
Mas, nada, nem um! Ziltch! Nem uma banda filarmónica, um coro, uma orquestra juvenil, um quarteto de cordas, um tocador de flauta de bisel, a banda da GNR, nada! Nem o maestro do costume Vitorino de Almeida. Não há o perigo do fenómeno musical se banalizar em Portugal. Aqui, a música está na categoria do fenómeno raro, só talvez observável por meio de equipamento especial, como aquelas câmaras de infravermelhos que registam o aparecimento de um animal em vias de extinção, desses raros que vivem nas florestas recônditas e que parecem surgir do nada. A última coisa que me lembro de ver há já bastante tempo, relacionada com música, foi uma série (excelente, de resto) sobre a história da música portuguesa, de autoria de Jorge Matta, que passava a uma hora daquelas que sugere que a RTP não levou este trabalho muito a sério...
O que é mais trágico, mas ao mesmo tempo cómico, é que vejo com alguma frequência músicos, compositores e musicólogos em programas chamados "culturais" (haverá outros?) a falar pormenorizadamente sobre música e sobre questões da vida musical portuguesa como se fosse uma coisa acessível a toda a gente e que toda a gente partilhe. As televisões passam uma entrevista com um compositor a falar da sua própria música, o que demonstra o interesse editorial neste assunto, mas o responsáveis pela programação parecem incapazes de experimentar incluir, na sua grelha, a própria música de que esse compositor fala. Aquilo que devia ser uma reflexão a posteriori sobre a prática corrente, é transformado, sabe-se lá por que razões obscuras e numa total inversão do cenário, no eixo da programação. Tolera-se algum parlapié sobre a música, mas dá-la a ouvir parece estar absolutamente fora de questão. Trata-se, francamente, de um fenómeno aberrante e de uma estranha forma de praticar e fomentar a cultura. Convidam-se uns músicos e uns compositores, arranja-se um apresentador que fala sempre de modo pomposo sobre questões que obviamente não domina, faz-se um espetáculo sobre os músicos e compositores a falar de música, mas não se mostram estes músicos ou compositores a praticá-la. As televisões encavalitam-se, sempre que podem, no "social" que os músicos e compositores geram, concentram-se no epifenómeno gerado por esses músicos e compositores, exploram alguma sua dimensão mais "circense", susceptível de ser valorizada pela câmara, mas esquecem-se de mostrar a actividade que está na base de tudo isto: a música.
O horror à música das televisões “generalistas” portuguesas é um fenómeno que só encontra paralelo no clássico fenómeno do horror que a natureza tem ao vazio. A televisão portuguesa tem horror à música. E, no entanto, por esse mundo fora, as televisões dos outros países passam imensa música, de todas as "convicções", e fazem mesmo uma coisa que as televisões portuguesas não fazem: debruçam-se, imaginem, sobre a música e os músicos portugueses. Músicos que por cá vão observando os ecrãs vazios da sua arte.
 Ele há défices e défices, não é...? Sobre a rádio falarei noutra oportunidade...

 (a foto foi retirada do site da Biblioteca ETG de Barcelos)

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