O ruído é do povo?

Há cerca de vinte anos estive  profundamente envolvido na elaboração e implementação do Regulamento Geral sobre o Ruído. Todos nós, os que nos interessamos e lutamos por um ambiente mais equilibrado e, em particular, trabalhamos na área específica da comunicação e da ecologia acústica, nos congratulámos com o surgimento deste Regulamento. Significava um passo importante —susceptível de correções certamente— no sentido de criar uma comunidade mais civilizada em Portugal. Penso que o respeito pelo direito a um ambiente sonoro equilibrado é a bitola para medir o grau de civilidade de uma sociedade. 
Na altura, o RGR foi alvo de uma série de críticas que, raramente, tinham algum fundamento ou legitimidade. Lembro-me. em particular, da reacção de um pateta, que mais tarde foi ministro da República Portuguesa, um dos políticos que mais “ruído” —aqui no sentido mais básico do termo, i.e., som sem conteúdo informativo, som incomodativo— consegue gerar. Escrevia a criatura no jornal que então dirigia, que o RGR constituia uma tentativa de "nacionalizar" o ruído. 
A imagem é infeliz. É que, entretanto, segundo dizem as estatísticas, o ruído terá passado de segundo lugar entre as causas de reclamação sobre disfunções ambientais para primeiro. A surdez profissional terá também passado de segundo para primeiro lugar no quadro das doenças profissionais. O ruído era e continua a ser apontado como a principal causa de desconforto das populações em todos os inquéritos sobre a qualidade do ambiente que têm sido feitos desde então. Infelizmente, a "nacionalização" do ruído, pelos vistos, não foi afinal tão eficaz como seria desejável. Os problemas agravaram-se, para mal das populações.
O RGR de 1987 foi alvo, entretanto, de uma primeira série de correcções que originaram um novo diploma em 2000 e, mais recentemente, foi aprovado na generalidade um novo Regulamento que introduz alterações significativas nos textos originais. 
Tudo isto levou a que a esta questão se tivesse passado a presstar mais alguma atenção. Embora tudo isto pareça insuficiente. A questão do ambiente sonoro parece estar a mexer, pelos vistos, embora o trabalho essencial esteja por fazer. A começar pela prática das Câmaras Municipais que pode constituir uma forma de agravamento de um problema, já de si bastante preocupante. Li, por exemplo, há pouco tempo, que a Refer está a desenvolver um plano de modernização da linha de Cascais que contempla medidas visando reduzir os níveis de poluição sonora e aumentar o conforto acústico dos diferentes componentes do seu sistema de transporte. Mas, ainda mais recentemente,depois de apresentar uma queixa, fui informado pela Esquadra da PSP de Carcavelos, que a C. M. de Cascais teria dado uma licença para um bailarico no meio de uma zona habitacional até às duas horas da madrugada! Invocando, certamente, o superior interesse dos dançarinos, mas esquecendo o interesse de quem merece e exige sossego. Os moradores deste bairro irão pois, em breve, poder viajar em comboios acusticamente confortáveis, onde poderão dormir em sossego, depois de uma noite de sono perdida por causa do bailaricos autorizados pela câmara...

Como disse atrás, o respeito por um ambiente sonoro equilibrado, e, designadamente, pelo direito a uma moldura de silêncio a partir da qual todos se possam expressar com o possível vigor sonoro, é a bitola que nos permite aferir o grau de civilização de uma sociedade. Tripudiar sobre este direito pode ser tão vergonhosamente primitivo como o conflito entre Hutus e Tutsis. Pode não parecer, mas é assim...

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